quarta-feira, 9 de junho de 2010

"Cidade de Deus": Pós-Modernidade e a Estetização da Violência

O que aparece num nível como o último modismo, promoção publicitária e espetáculo vazio é parte de uma lenta transformação cultural emergente nas sociedades ocidentais, uma mudança da sensibilidade para a qual o termo “pós-moderno” é na verdade totalmente adequado. A natureza e a profundidade dessa transformação são discutíveis, mas transformação ela é. Enquanto no modernismo havia criação e determinação nas obras acabadas, na pós-modernidade há uma constante indeterminação, tudo é processo, sendo que ocorre uma desconstrução daquilo que antes se acreditava estar totalizado. O fato mais espantoso da pós-modernidade é a sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico. Ela até se prende nas fragmentárias e caóticas correntes da mudança como se isso fosse tudo o que existisse.

O sentido de continuidade e a memória histórica são abandonados na pós-modernidade, que desenvolve uma incrível capacidade de pilhar a história e absorver tudo como aspecto do presente. Há pouco esforço aberto para sustentar a continuidade de valores, crenças ou mesmo de descrenças. Obcecados pela desconstrução e pela deslegitimação de toda espécie de argumento que encontra, os pós-modernos só podem terminar por condenar suas próprias reivindicações de validade, chegando ao ponto de não restar nada semelhante a uma base para a ação racional.

Os homens e as mulheres pós-modernos trocaram suas possibilidades de segurança por felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual e os da pós-modernidade provém de uma espécie de liberdade de procura do prazer que aprova uma segurança individual pequena demais. No filme “Cidade de Deus” este fato se torna evidente, pois os caprichos pessoais se tornam pequenas violências. Há uma imobilidade, onde os personagens têm um só objetivo durante grande parte do filme: a satisfação imediata de seus desejos. E este mundo do capricho desanda em violência.

No filme “Cidade de Deus”, o bandido é mostrado como alguém mau por natureza, e em uma lógica do desespero, onde cada um tenta satisfazer os seus desejos imediatos, ou seja, o sujeito vive sem projetos, sem ideais, a não ser cultuar sua auto-imagem e buscar a satisfação aqui e agora. No filme a palavra “culpa” não tem sentido, pois todos já são culpados previamente. Ocorre ambivalência o tempo todo. É uma espécie de compensação, onde sempre alguém tem culpa de algo, então tudo fica igual. Meirelles (diretor do filme) abusa da coloquialidade, havendo um descuido com o foco, enquadramentos que não buscam o equilíbrio visual, mas a expressão. Outra particularidade é que não foi utilizado equipamento de luz para suavizar os contrastes ou equilibrar a luz no filme. As linguagens se misturam e juntamente com a linguagem cinematográfica aparece a publicidade e os vídeos caseiros. Essa característica é muito observada no cinema pós-moderno, já não se sabe o que é uma imagem fabricada e o que é realidade.

Já no livro “Cidade de Deus” de Paulo Lins, a personagem principal é a favela, e esta favela também não tem projetos para o futuro. Paulo Lins mostra o lado antropológico da favela, um mundo de vingança e intrigas o tempo todo, que não tem início e nem fim, com leis, regras e códigos próprios. No livro não existe uma lógica, sendo que os personagens não possuem projetos, apenas comem, matam, cheiram, e assim por diante. É um mundo sem linguagem, e o grande feito de Paulo Lins , ao contrário de Fernando Meirelles, é que ele não tentou dar uma lógica para o que não tem lógica. Mas, de forma lenta, descreveu os acontecimentos conforme o pensamento momentâneo dos personagens. E isso poderia estar acontecendo enquanto o personagem fumava um baseado, conversava ao pé do rio ou qualquer outra situação. Sem uma lógica.

O indivíduo atual é sincrético, sua natureza é confusa e indefinida. No filme “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles” esta característica está presente em vários personagens da trama, como Dadinho, personagem Dadinho (que mais tarde tornar-se-ia Zé Pequeno) tem a violência presente em sua vida como algo normal e que vem desde criança, com um total desconhecimento de limites e regras. Os personagens são representados de uma forma plural e cheia de retalhos que não se fundem num todo. Os personagens do filme não crêem mais em totalidade e no decorrer do filme eles justapõem lado a lado suas vivências pequenas e fragmentárias, onde não existem regras, nem limites. A pós-modernidade tem especial valor por reconhecer as múltiplas formas de elevação que emergem das diferenças de subjetividade, de gênero e de sexualidade, de raça, de classe. É esse aspecto do pensamento pós-moderno que lhe dá um lado radical e ele também deve ser considerado algo que imita as práticas sociais, econômicas e políticas da sociedade. Mas, por imitar facetas distintas dessas práticas, apresenta-se com aparências bem variadas.

A pós-modernidade tem insistência na impenetrabilidade do outro, concentração antes no texto do que na obra, na sua inclinação pela desconstrução que beira o niilismo e sua preferência pela estética em vez da ética. O pós-modernismo quer que aceitemos as reificações e partições, celebrando a atividade de mascaramento e de simulação, todos os fetichismos de localidade, de lugar ou de grupo social, enquanto nega o tipo de metateoria capaz de apreender os processos político-econômicos que estão se tornando cada vez mais universalizantes em sua profundidade, intensidade, alcance e poder sobre a vida cotidiana.

A mais problemática faceta do pós-modernismo são seus pressupostos psicológicos quanto à personalidade, à motivação e ao comportamento. A preocupação com a fragmentação e instabilidade da linguagem e dos discursos leva diretamente a certa concepção da personalidade. Encapsulada, essa concepção se concentra na esquizofrenia induzida pela fragmentação e por todas as instabilidades que nos impedem até mesmo de representar coerentemente algum futuro radicalmente diferente.

A essência da pós-modenidade é que preferimos a imagem ao objeto, a cópia ao original, o simulacro ao real. Sendo assim, fica apenas o simulacro, que se passando pelo real o intensifica e fabrica o hiper-real, um real mais real e mais interessante que a própria realidade. Isso faz com que nos dias de hoje a própria realidade não exista mais, a não ser aquela que é intermediada pelos meios de comunicação de massa. A humanidade vive num momento no qual as imagens se transformam em biombos porque impedem acesso ao mundo. As imagens mascaram e modificam a realidade, e em vista disso, são poderosas e determinantes na formação de opiniões. Ou seja, a sociedade na qual vivemos atualmente é a do espetáculo, onde todos os formatos se espetacularizam e isso está mudando as representações.

Como vimos em “Cidade de Deus”, Paulo Lins utilizou o espaço literário como local de manifestação da violência, sendo essencial não só enquanto possibilidade de transgressão da lei, mas também para a reafirmação e delimitação desta mesma lei. A violência foi mostrada como o lugar da sociedade que mostra o limite dessa sociedade. Neste ponto de vista, ela é o ponto saudável dessa sociedade. No cinema corre solta a nostalgia acoplada à ficção científica. Reina o ecletismo e a mistura barata. A maioria dos filmes pós-modernos são moldados conforme o “gosto” da indústria cinematográfica e a exploração capitalista dessa indústria cinematográfica recusa satisfazer as pretensões do homem contemporâneo de ver sua imagem reproduzida. Nestas condições, os produtores de filmes tem interesse em estimular a atenção das massas para representações ilusórias e espetáculos equívocos. A população de massa somos nós, que temos condições de consumo e a sociedade de massa trabalha com regras padronizadas e com gosto médio, sem nenhuma preocupação com a estética.

O cotidiano hoje é o espaço para o envio de mensagens encantatórias destinadas a fisgar o desejo e a fantasia, mediante a promessa da personalização exclusiva. À personalização aliam-se o erotismo, o humor e a moda, que não deixam espaços mortos no dia-a-dia e o erotismo vai dos anúncios ao surto pornô, passando pela cultura psi (psicanálise, psicodrama) e seu convite ao desrecalque. O humor descontrai e desdramatiza o social.

Kafka em algumas de suas palavras representa muito bem esse novo momento do qual estamos participando, que é a pós-modernidade. Um fragmento de Kafka diz: “Outrora eu não podia compreender que minhas perguntas não obtivessem resposta; hoje em dia não compreendo que jamais tivesse admitido a hipótese de formular perguntas...” Ou seja, não podemos fazer questionamentos a respeito da época na qual estamos vivendo porque nem ao menos sabemos o que ela é ou o que representa. Devemos aceitá-la como uma nova fase que foi necessária e que foi instaurada em virtude dos anseios e pretensões do próprio homem e que muitas vezes não foram notadas nem mesmo por ele.

Durante muito tempo e em muitos países, a violência esteve estreitamente ligada à obtenção de reformas sociais ou à transformação dos regimes políticos ilegítimos. Com a crise dessa representação, difunde-se sub-repticiamente a idéia de que, já que a violência não esposa mais o sentido da história, ela não é nada mais do que um “fracasso”, mais ou menos transitório, de uma solução negociada e pacificada.

A violência aparece como sendo puramente negativa e sob a forma de riscos que a sociedade se mostra incapaz de controlar. Ela se torna ao mesmo tempo “ilegível” socialmente e “sobre-representada” virtualmente. A distância é menos entre o autocontrole pulsional interno e a violência social externa, do que entre os conhecimentos quanto à virtualidade dos riscos e as violências de uma parte, e, de outra, o sentimento de diminuição de nossa capacidade de ação, real ou simbólica, face a esses riscos.

Daí a tendência do cinema moderno em buscar as causas da violência no indivíduo, como por exemplo no filme Psicose de Alfred Hitchcock , que analisa apenas o indivíduo como um ser violento e não a sociedade como um todo. Já Paulo Lins, com o livro “Cidade de Deus” consegue mostrar este outro lado, que é a sociedade transformando as pessoas em bandidos, o que não acontece no filme de Meirelles, que fala de bandidos maus por natureza.

O sentido último da violência não é outra coisa a não ser a derrubada da representação tendencialmente dominante da condição moderna. A condição moderna se auto-representa como mergulhada num excesso de conhecimento e de informação que às vezes substituem a própria ação. A violência, ao contrário, só é representada sob a forma de um déficit de informação e um excesso de ação física ou de energia, nela a ação impõe-se sobre a informação.

Podemos falar da violência como aquilo que foge aos padrões impostos pelo que chamamos de ordem. Mas a ordem tem sempre como contraponto uma certa desordem. A ordem é dada pelo público e ridiculariza quem a infringe. Porém não devemos esquecer que a ordem não existe sem a desordem.

À violência pós-moderna, diferente da violência pré-moderna e moderna, não é atribuído um sentido positivo ou negativo. Ela tem um sentido espetacular, porque hoje vivemos na sociedade do espetáculo, onde tudo que era vivido antes diretamente tornou-se uma representação. A realidade apresenta-se agora como objeto de mera contemplação e o espetáculo é um movimento autônomo do não-vivo. O espetáculo do qual se fala não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens, sendo esta a sociedade na qual vivemos atualmente.

A violência de hoje não é tanto uma luta visível entre Estados e ligada a um campo de batalha, mas mais uma guerra interior, “invisível”, uma luta manipulada pela mídia, que nos diz quem serão os heróis e quem serão os bandidos. Vivemos em uma alienação em favor do objeto contemplado e quanto mais contemplamos, menos vivemos e também menos compreendemos a nossa própria existência e nosso próprio desejo. Isso porque a mídia nos deixa cada vez mais distantes uns dos outros e da realidade, fazendo com que qualquer acontecimento, por mais real que seja, acabe se distanciando da realidade devido à espetacularização que ele sofre.

A mídia virou um espetáculo e a sua função informativa, que antes era prioridade, acabou ficando em segundo plano. As fronteiras são espetacularizadas pela mídia, que comanda verdadeiros “shows” para os mais variados gostos e o que menos importa é se as informações a respeito do caso são verdadeiras ou se os atos do assassino infringiram as regras.

Atualmente o que liga os espectadores é apenas uma ligação irreversível com o próprio centro que os mantém isolados. O próprio espectador não se dá conta que de está sendo enganado e enganando a si mesmo por um fato que para ele é apresentado como real pela mídia. Os indivíduos se tornaram atores sociais e freqüentemente se tornam heróis pelo simples fato de a mídia os colocar nesta posição.

Em suma, tanto Paulo Lins como Fernando Meirelles tentaram mostrar a realidade da “Cidade de Deus”, cada um à sua maneira, e a partir de suas convicções. Na “Cidade de Deus” não faltam tiros e a morte, mas também aparecem tarefas práticas, conflitos sem importância e alegrias feitas de migalhas num país em que o “lado do asfalto” insiste em ser a ordem, enquanto o “lado de cá – a favela” ainda é considerada a desordem. Uma triste realidade num país em que a fronteira entre asfalto e favela há muito tempo já é invisível ou talvez nunca tenha existido.

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